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Odisseia Rodoviária

Publicado em 27/09/2020 Editoria: Crônicas Comente!


Odisseia Rodoviária[1]

Finalmente, depois de vencer uma fila de cinco por oito, ou seja, cinco para os lados e oito para trás, cada qual se deslocando para lá e para cá feito pinto na cerca, buscando um minuto de atenção dos balconistas que não sabiam que critério adotar para ordenar o atendimento, consegui uma passagem sentada, de Florianópolis para Itajaí, em linha que para tantas vezes quantas forem necessárias, para apanhar ou para deixar passageiros. Em época natalina o movimento rodoviário cresce muito.

Confortou-me a informação do atendente de balcão: se o ônibus lotar na rodoviária não para mais no caminho. Infelizmente o meu conceito de lotação não coincide com o do informante. E partimos com a lotação quase completa, lotando na subagência de Campinas, em São José. Para mim. Para o motorista, um grandalhão afrodescendente, maior do que o Mussum em todas as direções, haveria ainda tantos lugares quantos fossem os passageiros que encontrasse na estrada. Quando acabava de pegar uns, começava a deixar outros, de modo que a fauna humana se renovava em levas, mantendo o ônibus como uma verdadeira arca de Noé, acabando por tornar até divertida a viagem de três horas.

Mal deixamos a subagência e já um rapazote bem vestido, calça preta e camisa social branca, como garçom de festa, com cara de quem ia ver a namorada lá pelas bandas da Tijuquinha, arremessava-se da metade para a frente do ônibus, afobado, apalpando os bolsos traseiros e gritando, num misto de ordem e revolta:

- Para! Para! Roubaram a minha grana! Para que eu quero descer!

Desceu e pôs-se a correr de volta, na doce ilusão de encontrar quem o roubara. Não faltou um malicioso para comentar:

- Sabe lá se não é mais um golpe. Vai ver foi ele quem roubou alguém aqui...

Segue a viagem. Continuam os comentários a respeito do roubo e começam as paradas. Sempre para apanhar alguém. E o ônibus, já lotado, vai superlotando. E para outra vez. Entra mais meia dúzia. Os passageiros sentados já se oferecem para colocar as crianças alheias no colo, por ser desumano deixá-las sufocadas entre as pernas e as bundas dos adultos que viajam em pé.

A certa altura, a cada parada para colher passageiros, começam as exclamações em represália ao já conhecido mais atrás, por favor do cobrador, que alegava haver muito espaço, as pessoas é que não queriam ir para trás.

- Parece que tem lugar olhando só a parte de cima, moço, mas os pés da gente estão aqui que nem galinha de granja, disse o velhinho risonho, mostrando a dentadura postiça, gengiva cor de siri cozido.

Outro senhorzinho, mais austero, animou-se e, mesmo sem sorrir, ponderou:

- Ô senhor, a gente está aqui parecendo tipiti[2] na prensa. Se continuar assim, convém até apear e esperar outro carro.

- É porque não é o senhor que está na estrada, moço – argumentou o cobrador, na esperança de ser compreendido.

- Agora, senhor, um mundo desse de gente! Tem até uma senhora ali passando mal...

Em Tijucas entrou um senhor com um menino de uns nove anos. Queria ficar bem na frente porque desceria logo ali, no morro de Camboriú. O motorista tranquilizou-o dizendo que o chamaria no local e convenceu-o a ir para trás.

No ponto da parada combinada, para chamar o homem sem saber-lhe o nome, passou-se o recado boca a boca para o homem com o guri. Lá veio ele, esgueirando-se por entre a massa humana. Bem ao meu lado ele parou e não arredou pé do local, alegando que caíra uma coisinha aqui. O povo empurrava o homem e ele resistia para não perder o ponto onde deixara cair o objeto. Um canivetinho, segundo ele, quando me ofereci para procurar nas redondezas da minha poltrona.

No final das contas não era canivetinho coisa nenhuma: era uma tremenda faca de churrasco, com bainha e tudo. Ainda bem, porque protegida não iria ferir ninguém por acidente. E como parecia que o homem já tomara umas cachacinhas para comemorar o ano-novo que se anunciava, foi o assunto do resto da viagem. Na variação sobre o mesmo tema ouviu-se de tudo: desde a qualidade da cachaça ardida de Tijucas até o perigo que representa uma arma na mão de um bêbado. E ainda viajando com uma criança inocente sob a guarda dele.

Embora tivesse achado a viagem divertida e até proveitosa, por me render farto material para esta crônica, dei razão ao benjamim[3] da Academia Brasileira de Letras, Otto Lara Resende, que disse outro dia na TV, não sei a que propósito: O homem que é obrigado a viajar de ônibus já é um infeliz.

 

Lia Leal

Escritora

 


[1] Publicado em janeiro de 1980 no jornal O Município, Brusque.

[2] Mandioca ralada que é prensada para tirar a água, antes de ir ao forno para fazer a farinha.

[3] Membro mais novo de uma agremiação. Na época o autor havia sido empossado na ABL.

 

› FONTE: Floripa News (www.floripanews.com.br)

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