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Canal da Barra: Onde a Lagoa apaixonada abraça o mar.

Publicado em 12/09/2020 Editoria: Crônicas Comente!


Canal da Barra: Onde a Lagoa apaixonada abraça o mar.

 
 Ela chega de mansinho, em direção ao oceano, vai afinando, vai insinuando-se,  contorcendo-se, coleando, e quando menos se espera lá está ela, de mãos dadas com o mar, num eterno namoro, ora calma e serena, placidamente espelhada, ora nervosa, agitada, correndo célere, como se tivesse medo de que o amante se desprenda de seu braço e a deixe isolada, a delgada e balouçante ponte pênsil relegada a uma inutilidade supérflua de apenas enfeitar a paisagem dos moradores do morro, num arremedo pobre da sempre majestosa Ponte Hercílio Luz.
 
 Nas margens daquele canal cheio de fascínio, como em Itajaí e Navegantes, separadas pelo Rio Itajaí-Açu, como as cidades do Rio de Janeiro e Niterói, separadas pela Baía da Guanabara, vivem duas pequenas comunidades distintas: a do lado de cá do canal, e a do lado de lá do canal, conhecida por Fortaleza da Barra.
 
 Os do lado de lá, num aparente isolamento voluntário, colocaram, entre seus domínios e os intrusos que ali aportam aos milhares, de procedência diversa, aquele pequeno curso de água salgada, aquele braço de lagoa alcançando o mar, que os força a vencê-lo em frágeis canoas movidas a remo e a varejão apoiado no leito raso ou através da estreita ponte chacoalhante que parece feita de cipó. Os menos isolacionistas ficaram mais perto da primeira ponte, de concreto, e são mais facilmente alcançáveis até mesmo em veículos terrestres motorizados. Por isso mesmo, são mais parecidos com o pessoal do lado de cá: exploram restaurantes, moram em casas maiores e mais bem-acabadas, têm carro e telefone.
 
  Mas uma coisa me encanta de modo especial naquele ponto da Barra: é o espírito primitivo, simples e gregário dos que habitam aquele pequeno reduto de casas, casinhas e casinholas, coloridas, estampadas, desbotadas, no reboco ou na madeira crua, interligadas por estreitos caminhos calçados de cimento, um verdadeiro labirinto, sem nenhuma ordenação de planejamento viário e arquitetônico, um monumento vivo à anarquia urbanística, com solo irregular povoado de rastejantes pés de abóbora de largas folhas verdes rajadas de branco e vistosas flores amarelas em forma de sino; pés de araçá, de guabiroba e de goiaba que projetam seus galhos atrevidos por sobre telhados, sacadas e janelas adentro, permitindo aos proprietários, não raro, colher frutos mesmo estando dentro de casa; de imensos eucaliptos e floridas silvas, por sob cujas sombras cacarejam galinhas caipiras chamando a ninhada de pintinhos já na muda, de plumagem fina para peninhas mais duras e taludinhas; marrecos, patos, cachorros sem raça definida, amados guaipecas das crianças que brincam de Tarzan nos galhos de árvores ou mergulham, e nadam, e remam, e tarrafeiam, trazendo alegremente para casa, no samburá de cipó, uma gorda e adulta pescaria de uns dois ou três quilos de saltitantes camarões de tamanho mediano.
 
 Menos lúdica e mais produtiva e profissional, embora totalmente artesanal, é a atividade dos homens do mar, que no portinho ali adiante, no lado de cá, perto do pé da ponte e dos brunidores rupestres, encostam suas baleeiras cheias de lulas, peixes miúdos, médios e grandes, serpenteantes e prateados peixes-espadas, lustrosas garoupas cor de pinhão e enorme boca amarela, ainda saracoteando, mesmo com o arame lhes perpassando a guelra ofegante para pendurá-las na balança de gancho ou para exibi-las ao freguês ansioso e admirado, que só as vira, até então, congeladas, fatiadas, decapitadas, o olhar baço das cabeças separadas do corpo, na galeria dos mais refinados ingredientes do balcão frigorífico para um cheiroso e convidativo caldo de peixe, aromatizado com as indefectíveis folhas de alfavaca, que pelo morro circundam a casa, em pés desalinhados, sem canteiro, perto da vasa, por onde aparece, vez por outra, uma gamela toscamente esculpida a canivete num tronco de madeira autóctone, herdada de geração anterior.
 
  É na chegada dos barcos de pesca que turistas, moradores fixos, veranistas, gente do morro, do lado de lá e do lado de cá do canal, passantes, desavisados, gringos de voz espanholada, madames com cachorrinhos de raça fina, de chuca-chuca e maria-chiquinha, enfim, todos os circunstantes se misturam no coroamento do velho mistério sempre renovado e excitante do labor pesqueiro. Exclamações admiradas do turista neófito em pescaria se confundem com as do condoído pesar da gaúcha que presencia a garoupa viva tendo o olho vazado pelo arame para o ritual da pesagem e com os comentários sisudos e monossílábicos dos pescadores que separam, dividem, pesam e vendem o produto de mais um dia de trabalho.
 
  Em menos de uma hora a função está terminada: os pescadores se recolhem para os ranchos, a reparar redes e motores, ou vão para casa, não sem antes deixar, na padaria, no bar ou no minimercado, grande parte da féria do dia; as vísceras dos peixes ali consertados são devolvidas ao mar, para alimento de outras espécies marinhas locais; os curiosos se dispersam; os compradores do pescado regressam a casa, sequiosos por preparar e comer a fresca iguaria... Restam, sobre os trapiches e sobre o piso cimentado do portinho, apenas vestígios da passagem do pescado por ali: um leve cheiro, escamas e mais nada.
 
Lia Leal
(década de 1990)

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